A selectividade alimentar é comum. Todos nós, adultos, temos memória de empurrar as ervilhas de um lado para o outro do prato como se fossemos pastores de um rebanho de bolinhas verdes tresmalhado. Quem não terá cuspido (ou pior, puxado o vómito) com as cascas das favas? E pior, quais de nós já se esqueceram que chegámos a fazer uma bola de carne mastigada que, qual roedores fofinhos, acumulávamos poeticamente na bochecha?
A selectividade alimentar parece atingir 6% a 50% das crianças, com a máxima expressão em torno dos 3 anos de idade e o gradual desaparecimento em torno dos 6 anos. Mas atenção, a selectividade persiste para além dos 6 anos em cerca de 10% das crianças. Pode não ser apenas uma etapa e esconder algo mais. Aqui gostaria de ressalvar a possibilidade de uma patologia restritiva de ingestão alimentar que tem impacto sério na vida e saúde das crianças. No entanto, aquilo que entendemos como selectividade alimentar, é um fenómeno dos países desenvolvidos e raramente requer intervenção especializada. Nem mesmo pelo pediatra assistente, por muito grave que seja a ansiedade familiar.
Define-se por selectividade alimentar, quando a aceitação ou rejeição de alimentos parece assentar na neofobia (alimentos novos são à cabeça, rejeitados) e afecta sobretudo a carne, os vegetais e a fruta.
O impacto da criança que “não come nada” é variável de família para família: são os menus especiais, os alimentos proibidos, os métodos de preparação de alimentos interditos, a disrupção das rotinas e o conflito permanente entre pais e filhos.
Factores familiares de risco
Dizem que filho de peixe sabe nadar e neste tema (como em muitos outros), a importancia de perceber exactamente como é que foi a história alimentar dos pais de uma criança na consulta é muito importante.
História familiar de pais que eram dificeis de aceitar a comida, "pastelões", birrentos, que "não comiam nada", é logo à partida um factor de risco.
Parece haver um factor hereditário importante, nomeadamente na forma como cada um processa o sabor amargo e como tal, tem maior ou menor dificuldade em aceitar o sabor dos vegetais.
No entanto, sabemos que mães mais velhas, fumadoras, mais magras, com nível de escolaridade mais elevado são factores de risco importantes. Reparem: esta relação estabelece-se da mãe para o/a filho (a). Sim parece que há um papel de modelagem muito importante na mãe: a forma como a mãe interage com a comida é um aspecto central na forma como os filhos aprendem a interagir com a comida. Mães mais ansiosas, mais selectivas, com uma maior predisposição para o controlo alimentar são obviamente um factor de risco.
Existem contudo factores familiares de protecção: o não ser filho único parece ser um deles! Ter irmãos faz ter uma maior amplitude de exemplos de interacção com a comida. Ou se calhar, menos disponibilidade de cada família para preparar 2 ou 3 menus diferentes de acordo com as preferencias dos mais novos...
A história alimentar
a selectividade alimentar expressa-se independentemente dos bebés fazerem leite materno ou fórmula ou aleitamento misto. E não existe evidência científica que diversificar mais cedo seja protector. No entanto, a introdução tardia de vegetais constitui um risco, ou seja, iniciar a diversificação alimentar com a ingestão de vegetais parece ser uma estratégia bastante protectora: garante que a criança conheça os sabores dos vegetais, sem estabelecer logo a preferencia inata pelo sabor doce (da fruta e das papas, por exemplo).
E claro que a introdução tardia ( acima dos 9 meses) de alimentos sólidos ou que exijam ser mastigados, parece ser um factor de risco bem demarcado.
Quais as consequências reais desta selectividade alimentar?
Nós sabemos que as crianças selectivas parecem ingerir a mesma quantidade de calorias que as crianças não selectivas.
Ou seja, quase nunca a selectividade alimentar se vai traduzir em meninos magrinhos ou que não crescem.
E porquê? Porque existem substitutos mais calóricos (quem nunca fez uma papinha para substituir uma sopa que atire a primeira pedra). No entanto, há um risco real de défice de ferro, zinco e da ingestão de fibras. E o mais curioso, é que a ideia de fornecer "vitaminas" a estas crianças não desaparece! Reparem: a maioria dos compostos vitamínicos disponiveis no mercado nem têm valores de ferro ou zinco suficientes para serem classificados como suplementação! E para estas crianças, em vez de lhes dar vitaminas desnecessárias, porque não pensar numa estratégia global para ingerirem um pouco de tudo, ao invés de lhes dar snacks ou sobremesas lácteas? (mais uma vez, quem nunca pecou que atire a primeira pedra)
Por isso, nestas crianças, para além da anemia por falta de ferro, das dermatites e de alguma sensibilidade intestinal, a verdade é que há o risco real de obstipação.
E sim, a obstipação afecta 30% das crianças e os episódios de impacto fecal com cólica abdominal correspondem a 3% a 5% das causas de ida ao serviço de urgência: quem faz urgência pediátrica sabe bem que não há banco que não traga meninos a fazer clisteres...
Como tentar ajudar a resolver o problema?
1. Dar o exemplo
Faz o que eu faço é o princípio mais importante para qualquer criança. Eles têm um radar poderosíssimo para identificar hipócritas a 20km de distância. Por isso, adultos, comam a sopa e aprendam a gostar de ervilhas!
2. Comer é uma actividade social
Somos mamíferos gregários, festejamos em torno da mesa, por isso, em vez de porem as vossas crianças a comer numa cadeira alta com tabuleiro, tragam-nas para a mesa da sala, comam com elas, comam ao mesmo tempo, sejam felizes em torno da mesa.
3. Os miúdos precisam de cozinhar
Brincar com os alimentos, mesmo os mais difíceis de aceitar é absolutamente vital! Se os miúdos forem convidados a manipular couves de Bruxelas, a ver como são por dentro, a conhecer a textura, o azeite onde podem ser salteadas e todos estes detalhes, é possível (digo possível, não digo provável) que no final de 43 tentativas, eles possam levar as couves de Bruxelas à boca!
4. Falar sobre a origem e fim dos alimentos
Educar para a sustentabilidade é a nossa responsabilidade! E ensinarmos os nossos miúdos a respeitar o cultivo, a ver onde nascem e crescem os courgettes, perceber como escolher os alimentos, a sua preparação e o que fazer com as partes não aproveitáveis, a compostagem e o processo de degradação (sim, explicar bolores e fungos…) é tão, mas tão importante!
Não tenham medo, expliquem-lhes! Eles vão compreender!
5. Elementos desconfortáveis no prato
Eles podem não comer e não, não vamos entrar em guerra com isso!
Mas há uma coisa muuuuito importante; quanto mais restringirmos as ementas dos nossos filhos para aquilo que eles gostam para não termos chatices à mesa, maior a probabilidade de eles ficarem cada vez mais esquisitinhos!
Assim, devemos sempre colocar um elemento desconfortável no prato: meio tomate cherry, 2 ervilhas, 1 cm2 de alface…qualquer coisa! Podem não lhe tocar. Mas espera lá! E pode ser, já sabem, que um dia se faça luz naquelas cabeças e experimentem!