Há relativamente pouco tempo, uma médica em formação específica, interpelou-me com uma série de perguntas para as quais não consigo ter uma resposta óbvia: como é que tu, tendo filhos, consegues cuidar dos filhos dos outros? Como é que consegues separar-te do seu sofrimento e proceder às medidas que são necessárias? Como se consegue compartimentalizar a empatia que sentimos pelos doentes e pelas suas famílias?
E a resposta é esta: não se consegue.
Nós podemos dizer que o tempo, a idade, a experiência e a exposição permanente ao sofrimento dos outros, nos deixa imunes. Ou que pelo menos, nos deixa dormentes. E é verdade. Sobretudo para as pequenas queixas insignificantes, aquelas que chateiam muito os pais e pouco os médicos. É verdade. Raramente os motivos de consulta coincidem entre médico e doente. Aquele que é um sintoma cardinal para a família da criança, para o médico, pode ser perfeitamente normal e pouco valorizável. Ser mãe só me ajudou a identificar as queixas laterais dos pais e a dar-lhes resposta mais rapidamente, para depois me poder focar nos aspectos que me interessam investigar.
Mas o que eu gostaria de falar é de uma coisa que me é difícil, que é estar no fim de vida de uma criança. A primeira vez que reanimei uma criança depois de ter sido mãe, achei que ia morrer. Sim. Quando posicionei a cabeça para proceder a intubação, desconcentrei-me porque a menina tinha missangas no cabelo. Quando tudo falhou, decidi participar nos cuidados ao corpo com a equipa de enfermagem. Retirei cuidadosamente os tubos, os catéteres, todo o material estranho. Enquanto dobrava a roupa da menina, para devolver à mãe num saco, chorava copiosamente. Estava descontrolada. Não era o meu trabalho fazer isto, percebem? Mas eu quis fazê-lo ainda assim.
Isto não é uma invenção. É a minha realidade. Não sou mecânica, não sou insensível, não sou assim tão profissional quanto isso. O pior de mim, a minha emoção, é o que me permite dignificar estes momentos junto dos pais que perderam um filho. Que espécie de médica seria eu se não pestanejasse?
Quando a mãe olhou nos meus olhos (nessa altura não se usavam máscaras sequer), soube tudo o que se tinha passado, sem eu ter que dizer uma palavra. Mas reparem, ainda assim as palavras têm que ser ditas. Mesmo as mais difíceis de pronunciar.
Há pouco tempo recebi um louvor formal de uns pais que muito me impressionou, porque raramente somos louvados por deixar morrer alguém com dignidade. Não é suposto deixarmos morrer, percebem? A situação era obviamente difícil e perdida. Mas eu e um punhado de colegas, fomos ficando, não a abandonámos, nem abandonámos os pais. Assistimos a esta outra menina na morte. Sem medidas heróicas, sem agitação, sem gestos técnicos. Porque a medicina também é isto.
Pode parecer mórbido, esquisito, mas nestes momentos, não me separo da mãe que sou. Embora só consiga intuir ao de leve o que estão a sentir, o facto de o fazer, ajuda-me a olhar para a situação pelos olhos deles. Pensar que estão a confiar a vida do seu ser mais precioso a outro ser humano, um desconhecido, parece-me um acto de fé inacreditável. Somos tão falíveis. Quando as coisas correm bem, frequentemente, os pais nem se apercebem do milagre técnico que conseguimos. Quando as coisas correm mal, cabe-nos a nós honrar a perda o melhor que podemos ou conseguimos fazer. Estar aqui, na perda, é incrivelmente doloroso para mim, mas faço de tudo para honrar o sofrimento dos pais, ficando. Porque o meu sofrimento é nenhum, comparado com o deles.