O que é que uma pediatra pode falar sobre violência obstétrica? Provavelmente pouco.
Como pediatra não me compete o acompanhamento da mulher grávida, o apoio e a tomada de decisão durante o parto.
No entanto, como mulher, não me posso deixar de pronunciar.
A minha primeira dificuldade? Bem, na verdade, surge logo com a definição de Violência Obstétrica. O termo foi usado pela primeira vez na Venezuela em 2007 e diz respeito a uma forma de violência de género, na forma como a autoridade e autonomia de cada mulher é posta em causa, as suas necessidades (físicas, psicológicas ou emocionais) ignoradas ou minimizadas num período que se estende da gravidez até ao pós-parto.
Pergunto-me se faz sentido chamar-lhe violência obstétrica ao invés de lhe chamar má pratica clínica. E é aqui que realmente fico desconfortável. Vou dar um exemplo: mesmo depois de percebermos que a lobotomia frontal não era o tratamento adequado para a psicoce, não lhe chamámos violência neurocirúrgica (embora fosse, de facto, um procedimento violento). Assumimos que se tratava de má prática médica, e como tal, foi desacreditada, deixando de ser praticada.
Da mesma forma, como em outros sectores da medicina, o espaço para o erro humano e a má pratica médica, existe! Mas faz sentido falar de um tipo concreto de violência? Por exemplo, quando recebo uma criança com uma meningite, que tenho que fazer colheitas de sangue, sedar e colher líquor, estarei a cometer um ato de violência pediátrica? Ou estarei a fazer o que preciso de fazer, face ao conhecimento científico actual, para tratar esta criança? Isto não quer dizer que eu não comunique aos pais a necessidade de realizar estes procedimentos. Inclusivamente, tenho o dever de obter um consentimento informado por escrito no caso de manobras invasivas.
E será que, o que se passa nos blocos de partos, não é exactamente isto? Se não é isto, o que se passa?
Se eu acredito que existem motivos para muito descontentamento face ao funcionamento de muitos blocos de partos? Sim, acredito!
Se eu acredito que existem profissionais de saúde desmotivados, assoberbados de trabalho, impacientes, indisponíveis e inconvenientes? Sim, acredito!
Se eu acredito que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros ou auxiliares de acção médica) actuam tendo em vista a humilhação da mulher ou a indução propositada de dano no seu semelhante? Não acredito!
Como mulher, já fui admitida por duas vezes num bloco de partos. No meu primeiro parto fui submetida a uma manobra de Kristeller que vulgarmente carece de evidência científica e que pode trazer alguns danos. No entanto, pergunto-me com que intenção me foi realizada esta manobra sem o meu consentimento.
Será que quem a fez foi motivada pela urgência do período expulsivo e como tal, repetiu um gesto que viu e realizou incontáveis vezes antes de mim, sem reflectir? Creio que sim. Se agiu bem? Não. Se agiu mal intencionalmente? Não.
Como tal, acredito que fui alvo de má actuação clínica (fui alvo de um procedimento sem benefício relativo e fortemente desaconselhado), da má decisão da profissional que se empoleirou em cima de mim acreditando que isso iria fazer descer o meu bebé pelo canal de parto. Fui alvo de má decisão clínica. Se fui alvo de violência obstétrica? Não fui.
Ninguém intentou contra a minha integridade física, psíquica ou emocional tentando, de forma deliberada, causar-me dano.
Mas como é que podemos resolver isto?
Muitas das vezes, quando oiço relatos de má prática clínica durante o parto, penso na forma como a dita “violência obstétrica” se traduz sobretudo na “violência das instituições de saúde”.
Partos de mulheres sozinhas em nome de normas ditadas pela DGS, partos com restrição de movimentos, por ausência de telemetria sem fios ou de profissionais disponíveis em número suficiente para monitorizar as mulheres dignamente, manobras invasivas sem consentimento prévio (mesmo que apenas verbal), tratamento indiferente, ofensivo ou coativo perpetrado por profissionais de saúde com demasiadas horas de trabalho, sobrecarregados e sem capacidade para fazer o seu trabalho em condições.
Então, acho mesmo que muitas das questões que rodeiam a dita violência obstétrica (ou como eu acho que faz sentido chamar-lhe: a má pratica clínica no bloco de partos) têm que ver com equipas subdimensionadas, sobrecarga dos profissionais, más condições físicas de alguns blocos de parto e falta de investimento na actualização dos profissionais no sentido de uniformizar praticas e melhorar os cuidados periparto.
Com isto quero dizer que o problema da violência obstétrica é sobretudo um problema político: muito menos relacionado com a actuação deste ou daquele profissional, mas sobretudo devido a uma forma de organização dos cuidados que dá muito pouca margem à individualidade de cada mulher.
Ideias para mudar isto?
Do ponto de vista pediátrico, desde 1991que existe a iniciativa Hospitais Amigos do Bebé (OMS e UNICEF) que tem como objectivo promover o aleitamento materno em todos os hospitais com serviços de Obstetrícia, Neonatologia e Pediatria.
Porque é que dou este exemplo? Porque uma das formas de exercer violência obstétrica no período pós-parto é através das intervenções não necessárias no processo de amamentação. E precisamente porque as práticas hospitalares eram tão díspares, surgiu a necessidade de criar esta certificação, para defesa das mães e bebés. Assim, as mães sabem que se recorrerem ao um Hospital Amigo dos bebés, vão ter menor probabilidade de iniciar fórmula, colocar chucha ou usar mamilos de silicone.
Então, eu pergunto-me, se existisse uma certificação de Hospital Amigo das Mães e Bebés com critérios bem estabelecidos de qualidade, com exigência de formação específica e continuada dos seus profissionais e com disponibilidade de recursos físicos, se não estaríamos realmente a fazer mais e melhor pela saúde materno-infantil em Portugal.