6/9/2021

O dia em que fui professora de Mecânica II

Hoje celebra-se o Dia Nacional da Saúde Sexual. Parece um assunto não relacionado com a pediatria, no entanto, se queremos fazer crescer os nossos filhos numa sociedade mais justa, temos de garantir que os direitos sexuais são respeitados, na mesma medida que outros direitos humanos.

À parte da identidade de género - um tema tabu dentro da pediatria, já que são poucas as recomendações das sociedades pediátricas sobre o que fazer aos casos de disforia de género pré-púberes (devemos ou não frenar a adolescência destas crianças com recurso a controlo hormonal? E a partir de quando o poderemos fazer?) - ou da orientação sexual (aqui com alguma dificuldade em abordar estes temas em contexto familiar, muito menos com o pediatra), a verdade é que aproveito este dia para falar sobre educação para a sexualidade.

Ainda durante o curso, vi-me a braços com um desafio de grupo de realizar sessões de educação sexual nas escolas. Eram os anos em que havia financiamento e existia (creio que ainda existe) um Centro de Saúde na Lapa, em Lisboa, inteiramente dedicado à população adolescente. O centro chamava-se (ou chama-se) Aparece.

Assim, inexperientes, verdes que doía, lá fomos nós, com o nosso powerpoint, fazer uma aula de educação sexual para uma turma de mecânica do 10º ano, na Casa Pia de Lisboa. Estão a pensar bem: Mecânica, 10.º ano. Uma turma de 16 alunos, nenhuma rapariga, em que a média de idades estava longe de ser 15 -16 anos.

Logo à chegada, aqueles olhares intimidatórios e aquela atitude de desafio, como quem diz "o que é que tu me vens ensinar que eu ainda não saiba?". Todos galifões, todos ruidosos, cheios de cotoveladas e de olhares cúmplices com gargalhadas rudemente escondidas, porque na verdade, o que eles queria mesmo era marcar o espaço. E tinham razão: éramos nós no território deles. Estava tudo perdido.

Então, num momento de arrojo e de inspiração, eu decidi desenhar uma vulva no quadro, para horror asfixiante do professor de Mecânica II. O que é que eu perguntei? "Ora bem, já que percebo  que vocês dominam totalmente o assunto e que nós não estamos aqui a fazer nada, algum de vós se importará de assinalar no quadro onde se encontra o clitóris?"

Silêncio. Um silêncio preenchido de risos nervosos. Estavam subitamente agitados nas cadeiras e nenhum queria fazer contacto ocular comigo. Ne-nhum!

Então, depois de um período razoável de silêncio desconfortável, avancei para lhes explicar a anatomia do aparelho sexual feminino. E claro, começaram a surgir perguntas. Primeiro tímidas, depois desafiadoras, no fim, sinceras. Já sem risos, já sem gargalhadas, com genuíno interesse e atenção.

O que se seguiu foi mítico: durante 1h30 minutos, falamos sobre o orgasmo feminino e masculino, sobre o ponto G, sobre a dor no coito, sobre o uso de preservativos e lubrificantes e - pasme-se - sobre o papel tóxico de domínio e controlo atribuído aos homens no que toca à sexualidade, em contra-ponto à suposta submissão feminina. Falámos sobre expectativas, sobre ejaculação precoce, sobre desempenho, sobre orgasmos fingidos.

Saímos daquela sala, expulsos por outros professores, que entretanto tinham terminado o dia de trabalho, mas que não acreditavam que a turma inteira ainda lá estava.

Guardo o comentário do professor de Mecânica: "Vocês fizeram a diferença para estes miúdos. Incrível". Claro que regressámos à Casa Pia. Foi uma experiência única.

Vinte anos depois, ainda andamos com paninhos quentes a falar de educação sexual, ainda nos recusamos a acreditar que a informação é poder, saúde e responsabilização. Se 4 alunos idealistas conseguiram fazer isto, o que poderíamos fazer enquanto sociedade ?

Junte-se à newsletter e receba um ebook gratuito.