7/5/2021

Falhamos todos

A notícia é o que é: triste, incómoda, chocante. No entanto, quando leio o artigo, fico com a nítida sensação que aquela mãe poderia ser eu.

Pergunto-me se a responsabilidade é tão somente daquela mãe, ou se é de todos nós, enquanto sociedade.

O ministério público vai obviamente apurar circunstâncias e responsabilidades, mas se a culpa for nossa, então creio mesmo que morrerá solteira. E explico porquê:

Admitindo que não foi um acto deliberado desta mãe, foi um esquecimento de uma criança de 2 anos e meio no carro. Perguntar-me-ão "e isso é possível?" e eu responderei, claro que sim! Só quem nunca passou dias, semanas, meses, anos em privação de sono, em exaustão, no eterno malabarismo que é criar 3 crianças, mantendo uma vida profissional e um casamento é que pode fazer esta pergunta. Quando a cortina de sono e cansaço cobre os nossos dias, levando-nos a executar uma e outra vez as mesmas tarefas de forma mecanizada, vazia, distante.

Esta mãe fez o circuito das escolas e saltou um passo. A criança pode ter adormecido no carro e estar silenciosa. Nunca mais se lembrou...Preparou as crianças na manhã mecanicamente, preparou-lhes o seu pequeno almoço mecanicamente, levou-as à escola mecanicamente, conduziu mecanicamente. Só assim se comete uma enormidade destas. Quando estamos exaustos, desconectados de nós mesmos, em sofrimento, em silêncio, enredados em culpa do que poderíamos ter sido e não somos nem conseguimos ser.

Falhamos enquanto sociedade quando não reconhecemos que a parentalidade é exigente e deve ser protegida, com flexibilização de horários, abolição do espírito de presentismo, horários escolares decentes, benefícios fiscais à sérias para quem tem filhos a cargo.

Falhamos enquanto sociedade quando não fazemos da saúde mental uma prioridade, quando não falamos do sofrimento, quando silenciamos a exaustão das mulheres-mães com palmadinhas nas costas e piscares de olhos cúmplices a dizer que as mães são super-mulheres, que têm super-poderes.

Falhamos enquanto sociedade quando uma criança de dois anos e meio se debate durante HORAS dentro de um carro, numa via central de uma cidade com movimento e ninguém, repito, NINGUÉM, repara.

Não me venham com merdas: foi durante o dia. Será que ninguém viu? Será que ninguém ouviu o choro da criança? Em que mundo é que vivemos?

Não tenho muito mais a dizer sobre isto.

No meu pensamento está e estará esta mãe.

Que haja quem (como eu) a possa perdoar, porque sei que ela não se perdoa a si mesma.

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