Falar sobre o racismo é difícil. Falar sobre racismo sendo branca ainda é pior. O privilégio de raça branca coloca-me num ponto muito pouco confortável para fazer considerações sobre o racismo nos nossos dias ou sobre a forma mais correcta de o combater.
Mas enquanto mãe percebi o momento em que tive que falar de raça com o meu filho de 4 anos. Foi na nossa primeira ida ao McDonalds mais perto de nossa casa em Lisboa. Estávamos entusiasmados com a experiência, não tanto pela comida em si, mas pelo ritual do pedido, da caixinha do Happy Meal®, pelo brinquedo, pela folha de papel do tabuleiro com jogos e pela oferta de um livro de colorir e lápis de cera. Estava tudo a correr bem, estávamos descontraídos e a pensar que, apesar do miúdo não ter manifestado interesse nenhum na comida em si, estava todo bem-disposto com a miríade de novos items à disposição. E nisto, o Sebastião pergunta: “Mãe, porque é que os trabalhadores deste restaurante são todos de raça negra?!” E foi aqui que percebi: a) estou de tal forma cega que nem reparei que era esse o caso, b) fiquei altamente desconfortável com a pergunta, ainda para mais porque coincidiu com a passagem de uma colaboradora, que ouviu, e olhou para nós com um ar bastante consternado e c) o meu filho tinha razão e eu não sabia explicar isto sem abordar estigmas e assuntos muito delicados, como raça, classe social, oportunidades e remuneração.
E é aqui que gostaria de falar sobre uma coisa tão simples como a perceção de raça. Dizer de forma simplista que somos todos iguais não é verdade. Um bebé de 6 meses consegue reconhecer pessoas diferentes daquelas que constituem o seu círculo familiar mais íntimo. Achar que os bebés e as crianças não vêm diferenças, é apenas e só, ridículo. Se os nossos bebés vêm peles de cor diferente, procuram respostas para estas diferenças. O pior que podemos fazer é não dar seguimento às suas questões. Pior do que sermos cegos para a cor, é sermos silenciosos sobre ela. é justamente aqui que começa o verdadeiro preconceito.
Os nossos bebés vão ver estas diferenças e, à medida que vão crescendo, vão começar a fazer associações: que papeis têm as diferentes pessoas na escola, no supermercado, na farmácia, no hospital. Se nós não falarmos sobre isto, vão-se criar janelas de associação enviesadas. Porque, para os miúdos, aquilo que é uma evidente selecção social baseada em preconceito, não é percepcionado como tal se não for explicado. Porque a assimetria, se não for endereçada, transforma-se numa situação natural, aceite, invisível. E isso não pode ser!
E explicar que, apesar de sermos todos humanos, as oportunidades não são iguais para todos e que, apesar de muito confortável, a narrativa surda da meritocracia que afirma que “quem se esforça, consegue” é, no mínimo, redutora. Há quem se esforce mesmo muito e não consiga atingir determinada função ou remuneração, por um preconceito. E mesmo entre aqueles que efectivamente atingiram determinado patamar social, quantos foram os que provieram de um meio menos privilegiado? E a que custa o conseguiram? Seremos ingénuos se acharmos que não foi um caminho mais sofrido. Compreendo que, ao dizermos aos nossos filhos que grande parte do que nos calha na vida é dependente da sorte seja bastante difícil. Que noção de justiça cósmica é esta? Nós, que queremos educar os nossos filhos para a justiça não sendo cruéis, fazemos cair um véu cor-de-rosa sobre a realidade. Mas a realidade é de todas as cores.
Existem obviamente diferentes níveis de discussão sobre o racismo e, à medida do desenvolvimento das crianças, pode ser possível discutir assuntos progressivamente mais difíceis.
Mas, quando os vossos filhos são ainda pequeninos, permitam-me que sugira 4 formas bastante simples de trazer para o foco da sua atenção a questão da aceitação das diferenças.
1. Vamos falar sobre a melanina
A melanina é o nosso corante natural: ela tem características tão únicas como cada um de nós. É a melanina que determina a cor da pele, se é bronzeável ou não, a cor do cabelo e a cor dos olhos. A incrível combinação humana de cores e formas deve-se a proteínas como a melanina! Por isso, expliquem o que é a melanina. Expliquem que as peles muito claras têm menos melanina e as peles escuras têm muita melanina. Expliquem que, com o sol, a nossa pele produz melanina e ficamos mais morenos. É que a melanina é a nossa protecção natural contra o sol. É uma explicação tão simples e que ajuda a desmistificar tudo.
2. Vamos escolher bonecos e bonecas de todos os tamanhos, cores e feitios.
Sim, nada como deixar que na prateleira de brinquedos dos vossos filhos exista um pouco de tudo. Sendo os portugueses globalmente morenos, é limitador ter apenas bonecas louras. E porque não introduzir outras variáveis: outros tons de pele, caracóis, óculos, cadeiras de rodas.
O importante é mesmo trazer a variabilidade para dentro de casa e com isso abrir espaço para que as perguntas mais naturais possam surgir. Só assim podemos educar as crianças para a aceitação do outro.
3. Vamos escolher o que temos em casa
Como adultos, temos responsabilidade de escolher os brinquedos, histórias, músicas e filmes que tenham como protagonistas a mais variada panóplia de seres humanos. Nem sempre é fácil. O gigante Disney, por exemplo, tem uma princesa do médio oriente, uma menina de raça negra, uma guerreira asiática, uma heroína índia. E é tudo…depois temos um grupo imenso de heroínas entre o louro e o ruivo…e a Branca de Neve! Isto é fruto de uma tradição de representação que tem vindo a melhorar com o tempo. No entanto, não deixem de ter disponíveis as histórias com heróis e heroínas de várias cores e feitios. No caso dos bonecos e bonecas, escolher um pouco de tudo: outros tons de pele, caracóis, óculos e cadeiras de rodas. Só assim podemos criar oportunidades de diálogo.
Para os mais velhinhos, ler livros que possam abordar questões de preconceito. Como se sente o herói da história que é posto de lado? O que sentem as pessoas que o rodeiam e que não o defendem? O que é que se pode fazer?
Temos de incentivar a que cada vez menos, haja apenas e só testemunhas silenciosas, como se não fosse nada connosco. Não podemos continuar a ser cúmplices.
Quanto aos adultos, que percentagem dos nossos livros e álbuns de música são de autores não caucasianos? O que é que isto quer dizer sobre nós? Com a mesma naturalidade que podemos ouvir Yo Yo Ma a tocar Bach, podemos ouvir as Músicas para Churrasco do Seu Jorge. Ninguém que conheça e aprenda a amar a Strange Fruit da Billie Holiday pode odiar o outro pelo seu tom de pele. Os nossos filhos têm que crescer rodeados do tudo aquilo que existe de criativo e bom à face da Terra.
E a beleza não tem raça.
4. Vamos também pertencer a grupos menos uniformes
Por fim, percebo perfeitamente que procuramos quem nos é semelhante, por uma questão de conforto. Dar de nós ao desconhecido é difícil. Mas vou contar-vos a forma como o Sebastião comeu chocolate pela primeira vez. E sim, foi antes dos 2 anos de idade, algo que a maioria dos pediatras não iria recomendar, mas adiante. Estávamos a brincar num grande relvado público, quando se aproximou um menino sensivelmente da mesma idade que o meu filho que, claramente, pretendia jogar com a bola. A acompanha-lo, um senhor envelhecido, emagrecido, que, rapidamente percebi, não falava uma palavra de português. Falámos em inglês. Enquanto os nossos miúdos jogavam, o senhor explicou-me que era sírio e que tinha fugido da guerra. Estava feliz de estar em Portugal, mas achava a aprendizagem do português muito difícil. Nisto, num acto de generosidade, ofereceu bolachas de chocolate aos dois futebolistas. Reparem, o homem refugiado, sem nada, ofereceu ao meu filho, parte do pouco que tinha. E os dois miúdos, igualmente suados, com as calças cheias de manchas verdes de relva, sentaram-se a partilhar bolachas de chocolate. Não se compreendiam e compreendiam tudo um do outro, porque o chocolate é universal.
E no fundo, se calhar, é apenas e só isto que precisamos: aproveitar as oportunidades que temos todos os dias, de interagir com o ser humano que está ao nosso lado, independentemente da cor, idade, credo ou língua.