7/1/2021

Coronavírus 2019 nas crianças: o que sabemos

Era uma sexta-feira profundamente normal, aparte de ser dia de S. Valentim, quando o 7º caso suspeito de infecção por coronavírus em Portugal foi admitido para confirmação ou exclusão diagnóstica. A única diferença? Era uma criança.

Como trabalhadora no Hospital D. Estefânia e após a divulgação da situação na comunicação social, rapidamente o meu telemóvel registou um número crescente de mensagens de pais preocupados a tentar perceber se era verdade, se era fake news, se tinham motivos para estar preocupados...não os condeno e percebo perfeitamente a ansiedade.

Felizmente o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge é relativamente rápido a dar uma resposta e o caso não foi confirmado. A criança estava constipada, sim, mas não era o coronavírus 2019 (CoV-2019).

Como tudo começou?

Algures em meados de Dezembro de 2019 detectou-se o primeiro caso na cidade de Wuhan na região central da China. É a 7ª maior cidade, pertence à província de Hubei e tem cerca de 11 milhões de habitantes.

Os casos chamaram a atenção dos profissionais de saúde e a 31 de Dezembro de 2019, o gabinete nacional da OMS em Pequim recebeu informações sobre este surto. Só mais tarde o vírus foi identificado por sequênciação no Laboratório de Virologia de Hubei: percebeu-se que se tratava de um coronavírus muito semelhante ao coronavírus que afecta habitualmente os morcegos (96% de homologia), com algumas parecenças (76%) com o coronavírus implicado no surto de Síndrome de Dificuldade Respiratória Aguda Grave de 2002-2003 (SARS 2002-2003).

Desde o início que houve um esforço muito grande das autoridades chinesas em controlar o surto, tendo sido primariamente implicado como elo causal o mercado de peixe e marisco de Huanan. Das 41 pessoas infectadas até 2 de Janeiro de 2020, cerca de 2/3 tinham frequentado o mercado. Embora seja um mercado de peixe e marisco, também são comercializados animais selvagens para consumo alimentar. E das cerca de 500 amostras retiradas do mercado para análise, 30 estavam contaminadas com o coronavírus 2019.

O que não podemos ignorar é que o coronavírus é na verdade uma família de vírus que infectam humanos e animais. Nos últimos 20 anos tivemos 2 surtos de coronavírus com origem em animais: inicialmente o surto de SARS 2003-2003 , por um coronavirus inicialmente dos morcegos, mas transmitido por uma civeta (uma espécie de gato selvagem) e posteriormente o MERS (Middle East Respiratory Syndrome) em 2012, cuja a espécie de origem seria na mesma o morcego, mas a transmissão teria sido através dos camelos.

Se o contacto inicial foi feito de animal para humano (característico de uma zoonose), actualmente está devidamente demonstrada a transmissão entre humanos.

Numa medida absolutamente sem precedentes, a tutela chinesa declarou a 23 de Janeiro o isolamento da província de Hubei, colocando cerca de 50 milhões de pessoas em quarentena.

A 30 de Janeiro, a OMS declarou o surte de nCoV 2019 uma emergência internacional, embora não tenha tomado medidas de restrição de viagens e comércio.

A 15 de Fevereiro, estão confirmados laboratorialmente 49053 casos infectados, dos quais 48548 casos estão na China, com um total de 1523 óbitos. Os restantes 505 casos encontram-se em 24 países diferentes, com 2 óbitos registados no Japão e 1 óbito registado em França. Actualmente verificaram-se 16 casos confirmados na Alemanha – o país europeu mais afectado e 2 casos na vizinha Espanha.

De ressalvar que 14 dos 16 casos na Alemanha e os 2 casos espanhóis não têm registo de viagens recentes à China, embora tenham iniciado a sintomatologia fora do país onde foram diagnosticados (são por isso, viajantes).

Qualquer surto é passível de ser devidamente estudado à luz de modelos matemáticos que tentam prever a sua evolução. O que sabemos actualmente do estudo destes modelos é que a epidemia de nCoV 2019vai duplicar o número de pessoas infectadas a cada 6.4 dias.

Ainda assim, tendo em conta a transmissão, a estimativa do número de pessoas infectadas e a mortalidade verificada, estima-se que o nCoV 2019 tenha uma mortalidade de cerca de 2,5%, bem inferior aos surtos prévios de SARS 2002-2003 e MERS 2012.

Como é a doença causada pelo Coronavírus 2019?

Sabemos que após um período de incubação entre os 5.2 e os 14 dias, a pessoa infectada inicia febre, tosse seca e dificuldade respiratória. Existem sintomas acessórios como dor de cabeça, dores musculares e diarreia.

Na avaliação actual dos casos, cerca de 30% dos doentes adultos irão desenvolver uma doença suficientemente grave para necessitarem de cuidados intensivos.

O que se passa com as crianças?

O conhecimento disponível no momento parece apontar para o facto das crianças serem infectadas pelo nCoV2019 à mesma velocidade do adulto. No entanto, globalmente desenvolvem menos sintomas e doença menos grave. Há relatos de casos de crianças, com poucos sintomas, mas que apresentavam um padrão de infecção respiratória viral na radiografia do tórax!

Esta aparente “protecção” das crianças contra a doença grave de causa viral não é uma novidade: sabemos que a mortalidade infantil devida à varicela é 25 vezes inferior à do adulto. E mesmo a gripe comum, subtraindo o período neonatal, tem uma mortalidade 10 vezes menor nas crianças.

Isto pode ser devido ao facto das crianças serem globalmente muito menos doentes do que os adultos (têm menos doenças como diabetes, hipertensão, doença auto-imune) e terem diferenças fundamentais no seu sistema imunitário.

Ou seja, quando em contacto com uma infecção de novo, activamos simultaneamente duas vias de defesa: uma via inata, inespecífica, disponível e activa desde o nascimento e outra via adaptativa, específica para cada agente infeccioso e que no fundo precisa de ser construída ao longo da vida, como se uma biblioteca de conhecimento cumulativo se tratasse.

Assim sendo, as crianças têm simultaneamente uma via inata mais activa do que os adultos e uma via adaptativa menos conhecedora e isso aparenta coloca-las numa posição de relativa “protecção” contra a doença grave.

Quando pensar que pode ser nCoV2019?

Tendo em conta que as viagens para áreas afectadas ainda não estão proibidas, devemos pensar numa infecção respiratória a nCoV2019 sempre que uma criança (ou adulto) apresente sintomas respiratórios e febre e tenha 1) tido contacto com um caso identificado e confirmado de infecção a nCov2019 ou 2) tenha viajado no período de 14 dias prévios de uma das áreas afectadas pela pandemia (China e outros países asiáticos também afectados).

Como prevenir a infecção pelo nCov2019?

Existe habitualmente algum bom-senso nas recomendações. Parece-me óbvio que viajar neste momento para a Ásia poderá ser um factor de risco considerável, quer do ponto de vista individual, quer do ponto de vista de saúde pública.

No entanto, à parte dos EUA que suspenderam a entrada de imigrantes ou visitantes provenientes da China, Hong Kong e Macau no país e mesmo os cidadãos americanos e residentes permanentes regressados destas regiões têm indicação para quarentena, não estão firmadas quaisquer medidas de contenção relativas ao comércio e transporte de pessoas e mercadorias.

Por isso, vou deixar claro: não há restrições nas viagens.

Na verdade sabemos que estas políticas americanas não se baseiam em nenhum exemplo comprovado de eficácia para o controlo de transmissão. Prova disso mesmo foram os surtos de vírus Influenza H1N1 em 2009 e vírus Ébola em 2014.

Do ponto de vista individual e sobretudo porque começa a ser possível ter infecção nCov2019 sem viagem prévia à China, começa a ser importante divulgar as medidas de etiqueta respiratória:

  • Evitar o contacto com pessoas doentes;
  • Não tocar na cara, nariz e boca com as mãos não lavadas;
  • Ficar em casa quando se está doente;
  • Tapar a tosse ou espirro com o antebraço ou usando um lenço de papel prontamente descartável;
  • Limpar frequentemente superfícies e objectos de uso frequente com spray de limpeza convencional;
  • O uso de máscaras para protecção própria NÃO está recomendado;
  • A máscara deverá ser usada por pessoas com sintomas de forma a proteger as outras pessoas do contágio;
  • Lavar as mãos durante 20 segundos, com água e sabão, depois de ir à casa de banho, depois de tossir, de espirrar ou de se assoar e sempre antes de comer.

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