7/1/2021

Como falar de morte com as nossas crianças?

Falar de morte com crianças é como abrir uma pequena caixa de pandora. Ainda para mais quando nós, os adultos, temos tanta dificuldade em abordar o tema.

Sabemos que 1 em cada 20 crianças até aos 16 anos vai perder um contacto significativo. Por isso, para estas crianças, falar de morte não é opcional nem adiável. Mesmo às crianças pré-verbais (com menos de 2 anos de idade), alguma coisa terá que ser explicada, sobretudo porque apesar de não terem qualquer noção sobre o conceito da morte, são as primeiras a perceber quando alguma coisa não está bem. Nos mais velhos, à dor da perda, soma-se a preocupação com o sofrimento dos outros bem como o medo de perder outras pessoas significativas na sua vida.

No entanto, apesar da maioria das crianças não passar por esta situação esmagadora, as conversas sobre a morte acabam por ocorrer inadvertidamente, pela morte do peixinho dourado que decidiu saltar do aquário, pela morte do cão ou do gato, pela morte da bisavó muito velhinha que a criança vê duas vezes por ano.

Para falarmos de morte com as crianças temos que ter a noção que o conceito abstracto de morte só ocorrerá depois dos 8-10 anos. Mas isto não significa que crianças mais pequenas não possam compreender o que se passa, desde que tenhamos o cuidado de explicar de forma a que elas consigam compreender.

Para falar de morte é necessário explorar 4 conceitos:

1. A morte é irreversível

É um conceito óbvio para adolescentes e adultos, mas menos óbvio para crianças com menos de 5/6 anos. Na verdade, como sociedade, não nos esforçamos muito por ajudar quando fazemos desenhos animados que morrem e ressuscitam ou quando o actor que morre num filme, retorna ao grande ecrã noutro papel, só para morrer outra vez.

São obviamente mensagens contraditórias.

É importante explicar que não há retorno. E por isso é que é tão fundamental usar os termos “morte” e “morrer” ao invés de eufemismos bem-intencionados, mas deletérios, como “partir” – que os leva a pensar que regressarão e, caso não regressem, a questionar se isso acontece porque deixaram de gostar ou se fizeram alguma coisa de errado – ou “dormir para sempre” – gerando uma séria ansiedade com o sono.

2. Todas as funções vitais cessam com a morte

Este é um conceito com o qual até os adultos por vezes se debatem. Mas lá iremos. As crianças frequentemente atribuem características de ser vivo a objectos inanimados: ficam zangadas com uma pedra porque tropeçaram nela, dão de comer à boneca porque tem fome. Certo que isto faz parte do contexto de jogo simbólico. Mas a lógica é a mesma, se pedimos a uma criança para rezar pela avó ou para fazer um desenho para colocar na coroa de flores que vai para o cemitério. Na cabeça da criança, se a avó ouve as preces ou se vê o desenho, então também pode sentir-se apertada e aflita dentro do caixão, ou ter medo do escuro porque está debaixo de terra.

Obviamente que o assunto da vida depois da morte é algo difícil para uma criança pequena. Também o é para os adultos. É importante, sobretudo se a família professar um credo religioso ou tiver outro tipo de crença espiritual, distinguir entre o corpo isento de vida e uma parte da pessoa que não se vê e não se sente (chamemos-lhe alma ou espírito ou estrelinha) que pode continuar a existir. Isto tem que ser cuidadosamente explicado às crianças.

3. A morte é inevitável

Todo e qualquer ser vivo vai morrer. Verdade universal. No entanto, a percepção da nossa própria morte e daqueles que nos são significativos é muito mais difícil. Se a morte é inevitável – e é-o de facto – a criança pensará que, se uma pessoa significativa morreu, o mesmo poderá ocorrer a qualquer outra pessoa. É aqui que surge uma certa ansiedade que é preciso responder: a criança vai interrogar-se se os pais poderão ser os próximos. A verdade é que podem, nunca sabemos, mas temos que lhes explicar que é pouco provável que aconteça no imediato.

4. Como é que se deu a morte

Este ponto é sensível e difícil. Numa circunstância de doença prolongada, a criança assiste a uma auto-explicação da morte. É um processo longo e desgastante, mas têm uma certa coerência. A pessoa morreu porque estava doente, tentou tratar-se, mas a doença acabou por evoluir ainda assim.

A dificuldade reside na morte súbita, inesperada: as mortes acidentais, os homicídios e os suicídios.Tomando o exemplo dos acidentes de viação, é importante explicar mais do que “a pessoa X teve um acidente de carro e morreu”. Isto vai gerar muita angústia nas crianças mais pequenas, porque vão passar a associar o risco de morte aos passeios de carro. É importante explicar que nem todos os acidentes de carro culminam com a morte de alguém. Explicar que a pessoa que faleceu no acidente teve um traumatismo grave da cabeça no embate, acaba por ajudar a perceber a diferença. Não é necessário entrar em detalhes sórdidos do assunto.

No caso dos suicídios, sobretudo de uma pessoa significativa, como a mãe ou o pai, vamos ter uma enorme necessidade de apoio, não só porque o suicídio de um adulto vai implicar uma reflexão sobre as causas, a depressão ou angústia existencial prévia, como representa um risco para a própria criança. Filhos adultos de pais que se suicidaram, têm três vezes maior risco de suicídio de adultos com pais vivos. O suicídio de uma pessoa significativa vai gerar sentimentos muito profundos e justificados de zanga, frustração, culpa e, no limite, vergonha. É importante deixar que estes sentimentos se expressem. Tal como é importante contextualizar o suicídio dentro de uma doença mental que, apesar do tratamento, não melhorou.

As cerimónias fúnebres

Culturalmente é difícil levar uma criança a um funeral. A maioria das crianças, quando questionada, não quererá ir. Porquê? Pela razão muito simples que não sabem o que esperar. Nas crianças com mais de 5/6 anos (ou antes, se perguntarem), é importante explicar-lhes o que vai acontecer, quem estará presente, onde será, que há um caixão (que pode estar aberto ou fechado), que há flores e que as pessoas vão estar sérias e globalmente tristes. Não deixar nunca de sublinhar que a criança não vai ter nenhum papel a desempenhar, para que não fique ansiosa do que vai fazer. A maioria dos adultos não o faz, pelo que a criança vê toda a gente a chorar por participar de um evento horroroso e não percebe o que de tão grave se passou (reparem, já teve a notícia da morte, mas parece que as novidades não ficam por aqui).

Se, depois das explicações, a criança quiser ir, devem ser contempladas várias ajudas: é importante a presença de um adulto responsável e próximo por cada criança, idealmente alguém não envolvido com o processo de luto. Não pode ser uma prima que a criança nunca viu mais gorda. Professoras, educadoras, treinadores ou familiares com muita afinidade, mas mais afastados do processo de luto são importantes. A criança tem que saber que, em qualquer momento, pode vir embora. Não é obrigado a ficar nem a participar. Nas crianças mais pequenas, permitir sempre que levem um brinquedo se o pedirem. Nos mais crescidos, perguntar se precisam de um amigo.

O luto é a nova normalidade

Frequentemente os adultos expressam uma sensação de incredulidade no momento da notícia da morte de alguém significativo. Só depois de algum tempo é que a realidade se impõe e é precisamente aqui que se instala o processo de luto.

As crianças também fazem luto, mas fazem-no de formas diferentes, por vezes com comportamentos mais agressivos, de zanga e incompreensão, por vezes com pequenas regressões do seu desenvolvimento, como voltar a usar chucha, terem descuidos apesar de já não usarem fralda, quererem dormir acompanhados ou terem comportamento extremamente egoístas no cenário que estão a viver (é clássica a pergunta se ainda vão ter festa de anos ou se ainda vão ter férias com os amigos).

A rotina habitual vai desenvolver-se neste novo contexto e acaba por ser um aspecto muito organizador. Sobretudo nas crianças mais pequenas, os ritmos habituais e as rotinas são uma âncora fundamental para transmitir a ideia de normalidade e continuidade.  Existem as datas complicadas, como aniversários e outras celebrações e existem locais difíceis de revisitar. É importante sobretudo falar sobre as memórias de quem morreu. Esse diálogo tem que se manter aberto. Não obstante, pode haver a necessidade de apoio especializado quando suspeitamos que o luto não está a decorrer como esperaríamos: insónia, alteração persistente do comportamento alimentar e isolamento social são sinais cardinais para vigilância apertada.

Diálogo

Falar só por falar nunca é fácil. Ninguém quer falar do que dói. Mas as oportunidades para o diálogo nunca se esgotam. Às vezes são precisas perguntas abertas, inespecíficas, ao invés de perguntar directamente se sente a falta da pessoa. Outras vezes pode ser fundamental recorrer a outras muletas de diálogo, como a expressão criativa. Ouvir música em conjunto, desenhar, pintar ou escrever um diário podem ser ferramentas úteis. Nos adolescentes, a actividade desportiva é um óptimo catalisador de bem-estar e pode ajudar a equilibrar a dor.

O que gostaria que tivessem presente é que os lutos complicados surgem quando o diálogo familiar é pobre, superficial ou inexistente. Havendo espaço para o diálogo, o luto é difícil, mas suportável.  Para quem está de fora da família, há muito espaço para ajudar e não são apenas naquelas 2 a 3 semanas iniciais – o silêncio e a quietude que se instala depois é que é verdadeiramente difícil, é preciso continuar a apoiar aquela criança nos meses e anos seguintes.

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