7/1/2021

Burnout parental

Este é aquele primeiro texto que custa realmente a escrever: não só porque o tema é delicado, mas porque acho que sofro disto em 80% do tempo.

Feito o disclosure, talvez assim justifique alguns comentários que têm surgido: "Joana, porque falas disto, se não tem nada que ver com pediatria?" ou " Joana, mas tu queres ser psicóloga das mães?".

Não, não quero. Nem sei.

Mas se eu quero desenvolver um projecto profissional que tem a minha cara, que me é honesto e reverbera com todas as moléculas daquilo que eu sou, então, eu tenho que falar de assuntos que , não sendo exstritamente de saude infantil, têm um impacto brutal na saúde infantil. E nenhum ser humano é uma ilha. Ainda menos uma criança! E se eu tenho pais em burnout, isso vai reflectir-se no seu bem estar, na sua relação e no bem estar das crianças.

Por isso vou falar de burnout parental. Já ouviram falar em burnout, certo? A palavra burnout, sendo um anglicismo, traduz-se para português como esgotamento. E não há nada menos específico do que um esgotamento. Não, o burnout é outra coisa. Daí a beleza da origem da palavra, porque se prende com a ideia de combustão: algo que arde até que deixa de puder arder porque se esgotou o combustivel. É uma explicação perfeitamente gráfica e precisa.

E falar de burnout parental é colocar alguns dedos nas feridas: se é exclusivo das mulheres? Não, claro que não! Mas afecta sobretudo as mães. E porquê? Porque são as mães que, na sua grande maioria, são o gestor do projecto familiar.

Estou a pedir emprestado este termo de “gestor de projecto familiar” à Mikaela Öven, famosa palestrante e escritora de livros sobre Parentalidade Consciente e Mindfulness para crianças.

Aqui está a primeira ferida: as coisas tal como elas são, no momento actual, dizem-nos que às mães cabe a maior parte da responsabilidade parental. Se é sempre assim? Felizmente, não! Querem exemplos? Quem é que se lembra que é preciso levar mudas de roupa limpas para a creche? Quem é que prepara a mochila do bebé antes de sair de casa? Quem planifica a introdução de diferentes alimentos na dieta do bebé e não hesita se lhe perguntam se já deu abrótea ao menino? Pois, a mãe.

Então o que é isto de burnout parental? Não sendo específico das mães, afecta 8 a 14% das mães (e pais responsaveis pelo projecto familiar).

E alguém fala disto? Não, nem por isso. Até porque se os primeiros trabalhos científicos que falam sobre o assunto foram de 1983, só se voltou a olhar para a questão em 2007. E então, investigou-se o burnout dos pais com filhos sobreviventes de doenças graves ou com doença crónica. Mas aí não falamos de burnout parental simples, falamos do burnout parental e do cuidador. Apenas em 2015, um pequeno grupo de investigadoras mulheres na Bélgica, começou a trabalhar este tema. Desde então têm saído alguns artigos, com um dossier importante publicado em 2017 no Frontiers of Psychology.

Pode ser um tema novo, do ponto de vista formal, científico, investigacional. Mas não surpreende ninguém. Sobretudo os pediatras. Sobretudo as mães.

O burnout parental caracteriza-se por 3 dimensões muito relevantes: a exaustão física e mental, o afastamento emocional e a perda de eficácia.

Mas vamos explorar um pouco mais.

Construção da situação de burnout parental e exemplificação

Dimensão 1: do investimento à exaustão

As mães (ou pais: já compreendemos que não é específico do género, mas sim do papel de gestor do projecto família. Para efeitos práticos, a partir de agora vou designar apenas as mães) em risco de burnout são habitualmente perfeccionistas e, mesmo sem se darem conta, estabelecem objectivos difíceis de atingir (aqui estou a fazer um eufemismo: algumas mães estabelecem objectivos IMPOSSÍVEIS).

Para estabelecer estes objectivos, as mães tiram da manga uma cartilha aprendida (através da sua relação com a sua própria mãe) e aplicam-na à face dos valores que têm (por exemplo, as mães vegan, vão aplicar as exigências que herdaram do seu contexto familiar, mais os seus princípios ou escolhas alimentares – o que pode ser conflituoso, por exemplo, quando os avós condenam as dietas dos netos).

A esta cartilha pessoal somam-se pózinhos de perlimpimpim da sociedade de informação onde vivemos. Aqui é muito importante falar das expectativas irrealistas que algumas correntes educacionais impõem aos pais: a ideia que a parentalidade tem que ser 100% positiva, que a gestão de conflitos tem que ser perfeita, que os meninos têm que comer comida 100% biológica, preparada na hora, sem açucares adicionados, que as crianças têm que ser activamente entretidas com jogos e brincadeiras pedagógicas, que os brinquedos têm que ser estimulantes e amigos do ambiente, que é impensável deixar uma criança com menos de 5 anos em frente a uma televisão. Estas exigências encontram tanto mais ressonância nas mães, quanto mais informadas e empenhadas forem. Claro que é preciso uma dose de bom senso. Mas lembram-se que ser mãe não ajuda muito ao bom senso, certo?

Adicionalmente, mães empenhadas e informadas, têm necessariamente uma grande noção de responsabilidade do seu papel. Então começam a achar que, em vez de dar papa Cerelac à criança, devem antes comprar as papas do Despertar do Buda com mirtilos biológicos, colhidos à mão por velhinhas beatíficas, que fazem 10 horas de meditação por dia (no Celeiro, carérrimas), porque isso vai diminuir o risco de obesidade futura das suas crianças. Tem tudo a ver: se eu lhe digo que não agora, estou a aumentar a sua capacidade de resistência à frustração e como tal, estou a preparar o meu filho para ser um grande neurocirurgião. Estão a ver onde eu quero chegar? É um exagero, sim, mas quantas de nós não pensamos no impacto futuro das nossas acções?

Ou seja este grande investimento no papel parental, gera dúvidas sobre a competência e tende a esgotar todos os recursos que as mães têm disponíveis, levando-as a admitir que não têm mais a oferecer e como tal, começarem a sentir que talvez não sejam suficientes...e a sentirem-se culpadas.

Dimensão 2: do cansaço ao comportamento automático

A fadiga física e emocional crónica (aqui o papel da falta de sono, que afecta sobretudo os pais de filhos com menos de 5 anos) leva à exaustão. Como qualquer mãe exausta tem menos capacidade de gestão, instala-se uma sensação de vazio: passam a agir em piloto automático.

Esta sensação de vazio expressa-se em gestos mecânicos: não há verdadeiramente um afastamento físico, mas o tempo que estão com os filhos carece de intencionalidade. É aquele pensamento: banhos? Check! Sopa? Check! Prato? Check! Fruta com casca? Check! Dentes lavados? Check! Só falta a história...vamos lá escolher esta aqui que só tem 3 páginas....

As mães exaustas vão perdendo flexibilidade e capacidade de gerir imprevistos. Tornam-se reféns de rotinas, cujo abandono lhes gera grande ansiedade, por medo de agravamento do caos, para o qual já não dispõem de reserva funcional para encarar. Não estou a condenar. Mas quantas de nós temos um pânico secreto quando nos propõem almoços em família que se estendem durante a tarde e não temos onde deitar os miúdos para dormir a sesta? Quem é que os vai aturar depois, enquanto os homens bebém aperitivos à mesa?

Por outro lado, na adversidade (momentos de stress, como as oposições, as birras), as mães já não conseguem lidar e gritam, podendo agredir verbalmente (aqui é comum fazer aquela análise comparativa com o comportamento de outras crianças “mas és algum bebé?” ou melhor “tu não vês como os outros meninos se portam?”) ou mesmo expressar violência de forma alternativa (clássica forma de expressão de violência contra objectos: “se não arrumas tudo, vou deitar os bonecos todos fora” e às vezes vão mesmo fora...). Quando estes momentos de stress passam, as mães sentem-se envergonhados do seu comportamento e isso aumenta a sua sensação de incompetência (deviam ser as mães com mais paciência do mundo, tipo dalai lama, com um MBA na gestão de conflitos, não deviam descabelar-se desta forma).

Dimensão 3: Da exaustão ao sofrimento

A exaustão leva estas mães a agirem de formas que, deliberadamente não o fariam. No rescaldo dessas acções, emergem sentimentos de culpa (do que foi feito) e vergonha (de si mesma), mas sobretudo emerge o medo: medo daquilo em que se tornaram. A experiência da perda de auto-controlo no contexto de exaustão destroi a auto-estima de qualquer mãe. Estas situações fazem aumentar o abismo entre a mãe imaginada e a mãe real, ampliando-se a noção de fracasso.

Agora há um assunto mesmo muito importante: as pessoas já se habituaram a ouvir dizer que estão cansadas por causa dos filhos, no entanto, uma mãe assumir que já não gosta de tomar conta dos filhos não é nem socialmente, nem culturalmente, aceitável.

E é neste momento que se instala a solidão: a mãe ao estar transitoriamente incapacitada e estando farta de cuidar dos filhos, tem medo de assumi-lo e como tal, não consegue pedir ajuda.

Estamos a falar de mães em sofrimento e completamente isoladas no seu sofrimento.

O estigma social e cultural de ser má mãe combina-se com o estigma da doença mental (porque não se sentem fortes o suficiente para reagir e controlar a situação).

Assim, o burnout afecta toda a definição do eu: o eu individual, com os sentimentos de incompetência, medo, vergonha; o eu relacional, com a dificuldade relacional com os filhos, com os conflitos no casamento e o eu colectivo, com a incapacidade em pedir ajuda.

No próximo post, porque este já vai longo, vou tentar abordar algumas estratégias de intervenção.
Até lá!

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